29 de abril de 2008

A eles!

Pelo menos alguma da história do PSD sintetiza bem uma parte substancial da condição lusitana: a táctica ao serviço da ganância, o arrivismo, a fulanização, a intriga, o estado ao serviço dos interesses pessoais. Pelo meio de pão, circo e obras de regime.

A fase actual do bando é o registo pós-apocalíptico, a imprevisibilidade como território em que os mais impacientes e, até no oportunismo, incompetentes tentam fazer pela vida; pondo a nu toda uma inenarrável falta de sofisticação, motivo pelo qual em condições normais não teriam hipótese de cheirar o grande poder, que geralmente é filho de puta mais fina. A coisa está tão escancarada que nem se preocupam em simular algum embaraço, contribuindo ainda mais para a estupidificação geral, que aliás pretendem e que os protege. A maior parte daqueles que poderiam assumir a defesa de um grau mínimo de decência intelectual já nem sequer se manifesta. Os populistas saltam dos seus feudos raquíticos e, para o fazerem, precisam de fomentar o nível do pensamento mais básico e linear, sob o manto de um ataque à arrogância das elites.

Às vezes apetece-me começar aos berros: esta cambada de mafiosos é estúpida, boçal e desonesta. São tão ridículos que têm ridículo escrito na testa. Corram-nos a pontapé sempre que puderem, contribuindo assim para elevar o nível geral da contra-argumentação.

|img| Eric Drooker > Cliff Dwellers

27 de abril de 2008

Blade Runner

Tive a sorte de apanhar o Blade Runner numa sala de cinema, há muitos anos na Casa das Artes. Se bem me lembro era a versão da voz-off, com Deckard a simular um extra de um dvd que ainda não existia; algo como uma opção que, a seguir ao filme comentado pelo realizador também proporcionasse os comentários da personagem. Perdia fulgor, perdia uma das características que o eleva a um patamar único: o da obra aberta, sempre inacabada ou pelo menos difícil de ser fixada, seja na interpretação que cada um lhe dá ou mesmo em termos formais. Deckard dirigia-nos pela história e o filme transformava-se na história de Deckard. Ora, Deckard não é, de todo, o que de mais interessante o filme tem para apresentar. Deckard é um tipo focalizado, circunscrito, competente mas pequenino. E encerrava pateticamente uma réstia de esperança: a salvação pelo amor. Demasiado humano, apesar de nem isso ser garantido. 

Mesmo assim, qualquer uma das fases por que Blade Runner já passou vale a pena, mais ainda se vista num grande ecrã. A cidade, as explosões que se elevam quase ao nível dos limites de uma atmosfera rarefeita, as fachadas dos prédios transformadas em gigantescos techno-outdoors que incitam à Coca-Cola e às colónias extraterrestres (go west, sempre), o caos urbano e genético, as pirâmides das corporations, tudo realça o contraste entre as pequenas formigas e os seus enormes formigueiros.

É de aproveitar, portanto, esta espécie de reposição. O filme ultrapassou a novela do K. Dick desde a sua primeira versão e, sinceramente, de cada vez que o Ridley Scott saca do bisturi, consegue melhorá-lo. Blade Runner vive do grande quadro, que tem sempre resistido a tudo (incluindo às novas ordens do mundo) e de pequenos pormenores. O filme tem milhões de pequenos pormenores e Deus não aparece em nenhum. A humanidade correu mal e está entregue a si própria, niilista, cínica, desesperançada, quase desangustiada, uma cambada de órfãos sem maturidade para sobreviver. Roy Bates percebe-o ao fim dos últimos espasmos. Que já só lhe restava morrer.

24 de abril de 2008

Saramago

Está velho, o José Saramago, e uma parte de mim envelhece com ele - é o mínimo. Essa parte cresceu dentro do que ele transformou em livros, quando me abriu a cabeça e alagou a esponja achatada, a partir do momento em que fiquei preso na cantilena que em puto tanto me resistiu, de dizer cá dentro ao sabor das coisas que respiram. As palavras separam muito, como se vê; as dele menos um bocado.

21 de abril de 2008

Coiso e tal e coiso

A net veio, como se sabe, aproximar o mais anónimo cidadão das grandes reflexões sobre o mundo e o ser-se, catapultando-o para uma imensa ágora global. Há já muito que a possibilidade de opinar se baseia num duplo sentido, entre os clássicos colunistas/paineleiros e aqueles que, veio a saber-se, do lado de cá sempre se interessaram em pensar pela própria cabeça: se Sim, se Não, se Tal. A maior parte da media, diga-se em abono da verdade, reconhece e aproveita a mais-valia. O Correio Da Manhã, por exemplo, em ininterruptas demonstrações de valorização daquilo que os seus leitores acham ou deixam de achar, pergunta-lhes online se "o novo namoro de Cristiano Ronaldo é para valer" e se os "jogos olímpicos podem criar crise na família real inglesa". Antigamente limitavam-se a informar-nos se o corpo de redacção pensava coiso e tal e coiso; hoje em dia podemos todos achar se tal ou se coiso. Se tivermos a mania da complexidade e da contradição e acharmos que coiso e tal e coiso... abrimos um blogue. O Correio da Manhã faz o que pode e a mais não é obrigado.

Herbalife: Espanha desaconselha consumo do produto dietético depois de detectar casos de toxicidade

Isto é muito perigoso para quem se habituou a andar de Porsche emprestado (apesar dos 'Herbalifes' e das folhas espalhadas pela pintura, que o transformam numa carroça azeiteira, está lá o horsepower todo), muitas vezes metidos em fatos alguns números abaixo do que se adivinharia natural (suponho que também devam ter acesso ilimitado aos produtos propriamente ditos: não podem andar de broche 'perca-peso-pergunte-me-se-como' na lapela e acusarem cento e tal quilos na balança, até porque não caberiam no cockpit e lá se evaporaria o grande cálice de tal emprego). Doses de realidade no horizonte, portanto.

20 de abril de 2008

Telenovelas prá classe média (ui...)

Bastam-me o Domingo e a Segunda-Feira para despachar as séries que, actualmente, me interessa ver: West Wing (a única obrigatória, AXN), Entourage (SIC, absurdamente traduzida para A Vedeta), Erva e Californication (quando calha, RTP2). ProntoS, é isto.

16 de abril de 2008

Air

Dez anos de Moon Safari são uma boa desculpa (quando na realidade o que conta é qualquer das músicas que o compõem, mas principalmente o conjunto), para reactualizar um dos grandes discos dos 90s. Ora venha de lá essa caixa com 3 rodelas: o álbum propriamente dito, versões e remisturas, performances live e um documentário da tour de 99. Com o embalo, ando a recuperar o Premiers Symptoms e The Virgin Suicides. E esta trilogia vale mais do que a maior parte da pop electrónica recente, toda junta. PS: Ah! Estes 3, principalmente o Virgin Suicides (esse colosso), são nitidamente sobrinhos dos Pink Floyd, fase Pompeii.

12 de abril de 2008

Ai isso é que é...

Está a ser complicado, o luto. Dirigentes, treinadores, jogadores, sócios, adeptos, jornalistas (tem mesmo que ser em itálico...), todos empancaram na negação e de lá ninguém os tira. Desde há coisa de 34 anos, dia após dia, assistimos à criação de novos messias, bodes expiatórios, delírios de grandeza - tudo tem servido para fugir à única coisa que os poderia safar: o confronto com a prova da realidade. Mas quem estará disposto a isso? A prova da realidade implica, no futebol, um paradoxo de incalculável magnitude: implica parar de distorcer, implica um trabalho de luto sobre mitos e desejos - no fundo, implica suspender a dimensão escapista. E futebol sem escapismo é... o Sporting. Uma seca. Na próxima fase, resta às multidões do Glorioso (outro itálico, volta a ter que ser...) substituir radicalmente um mundo - o mundo do resto do mundo - por outro - o da cabeça deles -, numa folie à 6 million. Fátima já provou que é possível. Mas insuportável de aturar. 

8 de abril de 2008

7 de abril de 2008

A Tempestade

O animal está deitado no chão com ar de quem tem muito mais que fazer e não compreende por que raio não lhe facilito eu a vida. Vou-a olhando nos olhos mas não consigo aguentar muito tempo, levo-a à janela e mostro-lhe o dilúvio lá fora, explico-lhe tudo, abro o vidro e molhamo-nos um bocado e as cortinas invadem a sala e as madeiras ficam ensopadas e os discos e os livros são quase sugados para dentro da noite quando o vento muda de direcção. A tempestade faz-me adiar o momento em que teremos de ir lá abaixo nem que seja um minuto, correndo o risco de sermos levados pelo ar ao lado de jornais da semana passada, teses de doutoramento chumbadas, pessoas magrinhas, sonhos desfeitos, cabeças no ar, da Margarita a caminho do Mestre em gargalhadas de volúpia demente, ninhos mal engendrados e instrumentos de sopro que se espalham pelo universo da atmosfera e que produzem aqueles assobios que mais parecem lamentos e se calhar até são. A natureza dela chama-me, saiam da frente, estamos mortinhos para fazer o que tem de ser feito.

6 de abril de 2008

Os Vigilantes

O silêncio é a morte
E tu, se falas, morres
Se te calas, morres
Então, fala e morre.

Tahar Djaout
*

Argélia, década de 60, logo a seguir à Guerra da Independência. Mahfoudh Lemdjad inventou um tear. Depois de anos a pensar, planear, maquetear, organizar, fez-se à sorte de registar a patente num qualquer gabinete do estado. Ainda não faz ideia de que a luz que, madrugada fora, emana dos seus aposentos, lhe garantiu processos de intenção e um rigoroso escrutínio por parte de um grupo de zelosos cidadãos vigilantes. 

O secretário da câmara, onde Mahfoudh tentou o registo, discorre sobre a estranheza do pedido: "- Não é todos os dias que nos aparece um caso relacionado com inventos. Por isso há que dar desconto às nossas reacções. Por certo não ignora que na nossa sagrada religião as palavras 'criação' e 'invenção' são por vezes condenadas, porque entendidas como heresia, um pôr em causa o que já existe, nos domínios da fé e da ordem estabelecida. A nossa religião recusa-se a aceitar os criadores devido às suas ambições e à sua falta de humildade; recusa-se porque tem em vista preservar a sociedade dos problemas que uma inovação traz consigo. (...) O senhor veio perturbar a nossa paisagem familiar de homens que vêm em busca de pensões de guerra, de rendimentos no comércio, de licenças de táxi, de lotes de terreno, de materiais de construção; que se servem de toda a sua energia a descobrir produtos que não existem como a manteiga, os ananases, os legumes secos ou os pneus. Como quer o senhor que eu consiga classificar o seu invento neste universo esofágico? O mais que posso aconselhar-lhe é voltar calmamente para casa a fim de nos conceder um tempo de reflexão que nos permita, assim o Altíssimo se digne assistir-nos, conter e digerir a nossa emoção." Claro que o gajo ficou a ferver em ódio. E a conspiração dos vigilantes continua, nas sombras. Vai dar obviamente merda, porque Mahfoudh não é visto nas orações e, está agora demonstrado, cogita noite fora, tudo da sua cabeça. 

A caminho da capital visita o irmão, com quem espera recarregar forças para voltar à luta. Mas Younès, frustrado pela vida académica e profissional que nunca teve, transformara-se num ressabiado cumpridor do cânone: casou, teve filhos e não admite réplica em assuntos que versem a ordem natural das coisas. "- Serias um homem perfeito se não te faltasse a prática da oração. / Mahfoudh replicou que esse género de prática dependia do seu livre arbítrio e da sua consciência. E em relação a isso não sentia, nessa altura, qualquer problema." 

Mahfoudh está por um fio, já se vê. Como Tahar Djaout, assassinado em 1993 na sequência de várias ameaças de morte sobre o corpo de jornalistas do Ruptures (tiragem média de 70.000 exemplares), em que se incluía. 'Os Vigilantes' foi o seu último livro.

4 de abril de 2008

Gato realmente Fedorento

O Gato Fedorento nunca foi a grande revolução humorística que se apregoa; nunca foi, sequer, um Herman pré-relógio-de-24-quilates. Tiveram ou têm a sua piada, foram ou são capazes de criar situações engraçadas e, de quando em vez, muito engraçadas; sempre em registo sound-byte infeccioso (peguem lá esta modinha, gastem-na até que já não a possamos ouvir). Em Portugal, país onde os verdadeiros protagonistas suplantam sempre as caricaturas, aquilo que eles fazem pode considerar-se bem bom. Mas bem bom no sentido de ser o que temos, seguido de um encolher dos ombros e mudança de assunto. Se o início, artesanal e mesmo rudimentar, trouxe aquele bónus de pica e romantismo, à medida que a coisa avança percebe-se que o acesso a produções cada vez mais cuidadas prejudicam o ambiente meio caótico de adolescente com uma câmara de vídeo em que os sketches do grupo se alicerçavam. O Isto É Uma Espécie De Magazine teve tanto de paradigmático como de soporífero. Há coisas que se alimentam da adversidade, e a melhor criação artística sempre viveu muito de um certo espírito anarca, reivindicativo ou de simples accusatione. Ora, não só os Gato, como escreveu em tempos VPV, são política e socialmente irrelevantes (não pensam a política nem a sociedade, apenas a caricaturam), como estão a ficar ricos. Se uma maior profundidade de acção, além dos bonecos que criam, nunca lhes interessou (tal opção reduzir-lhes-ia, inevitavelmente, a audiência) estão agora prestes a perder algo mais: têm euros, popularidade e acesso - três dos principais cálices que os empurraram para a frente. Promover ou aceitar a promoção de anúncios publicitários nos mesmos moldes em que se promove material artístico, inédito ou requentado, não é apenas o corolário do hype; é também o princípio do fim. Não vai ser dramático.

3 de abril de 2008

Tetris

Jessyel Ty Gonzalez | Because Vandals Like Tetris, Too

Toda A Verdade

Certo dia, a mãe de uma menina mandou-a levar um pouco de pão e leite à sua avó. Quando caminhava pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe onde ia.

- Para a casa da avozinha.

- Por qual caminho, o dos alfinetes ou o das agulhas?

- O das agulhas.

O lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou o seu sangue numa garrafa, cortou a carne em fatias e colocou-as numa travessa. Depois, vestiu a sua roupa de dormir e deitou-se na cama, à espera. 

Pa, pam.

- Entre, querida.

- Olá, avozinha. Trouxe-lhe um pouco de pão e leite.

- Sirva-se também, querida. Há carne e vinho na copa. 

A menina comeu o que lhe foi oferecido, enquanto um gatinho dizia: "Menina perdida! Comer a carne e beber o sangue da avó!"

Então o lobo disse:

- Tire a roupa e deite-se comigo.

- Onde ponho o meu avental?

- Atire-o ao fogo. Não vai voltar a precisar dele.

Para cada peça de roupa (...) a menina fazia a mesma pergunta, e a cada vez o lobo respondia:

- Atire ao fogo... (etc.).

Quando a menina se deitou na cama, disse:

- Ah, avozinha! Como você é peluda!

- É para me manter mais aquecida, querida.

-Ah, avozinha! Que ombros largos você tem!

(etc., etc., nos moldes do diálogo conhecido, até ao clássico desfecho):

- Ah, avozinha! Que dentes grandes você tem!

- É para te comer melhor, querida.

E devorou-a.

*

Este conto foi recolhido por Charles Perrault, da tradição oral camponesa do século XVII. Termina bruscamente assim. Não há caçador corajoso nem resgate da Capuchinho ou da avó. Não existe final feliz nem uma moral da história. As narrativas populares europeias, matrizes dos modernos contos infantis que, a partir das adaptações feitas no século XIX, passaram a integrar a mitologia universal, não apresentavam a riqueza simbólica que faz dos contos de fadas um depósito de significações inconscientes. Longe de ocultar a sua mensagem com símbolos, os contadores de histórias do século XVIII, na França, retratavam um mundo de brutalidade nua e crua.

Post adaptado de 'Fadas No Divã - Psicanálise nas Histórias Infantis'; Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso; ArtMed; 2006

1 de abril de 2008

Love @ First Site

Está tudo muito bem, neste blogue: o pessoal tem jeito, tem piada, chega a ter graça e, não raro, calças de ganga. Mas o que eu queria mesmo dizer era: João Bonifácio a colunista de última página à Quinta-Feira no Público, já! O Pulido Valente precisa de quem lhe aqueça a arena ou mesmo de quem se pegue com ele, todo o aqui e então. De quem lhe mostre um citrino a-ressabiado, esse mito urbano e de todas as periferias.

Declaração de interesses: nunca vi o JB mais gordo. Na verdade, sempre o vi sensivelmente com 72 quilos e meio; à excepção do dia em que o moço foi ao Dragão e inchou aí para o dobro.