Tive a sorte de apanhar o Blade Runner numa sala de cinema, há muitos anos na Casa das Artes. Se bem me lembro era a versão da voz-off, com Deckard a simular um extra de um dvd que ainda não existia; algo como uma opção que, a seguir ao filme comentado pelo realizador também proporcionasse os comentários da personagem. Perdia fulgor, perdia uma das características que o eleva a um patamar único: o da obra aberta, sempre inacabada ou pelo menos difícil de ser fixada, seja na interpretação que cada um lhe dá ou mesmo em termos formais. Deckard dirigia-nos pela história e o filme transformava-se na história de Deckard. Ora, Deckard não é, de todo, o que de mais interessante o filme tem para apresentar. Deckard é um tipo focalizado, circunscrito, competente mas pequenino. E encerrava pateticamente uma réstia de esperança: a salvação pelo amor. Demasiado humano, apesar de nem isso ser garantido.
Mesmo assim, qualquer uma das fases por que Blade Runner já passou vale a pena, mais ainda se vista num grande ecrã. A cidade, as explosões que se elevam quase ao nível dos limites de uma atmosfera rarefeita, as fachadas dos prédios transformadas em gigantescos techno-outdoors que incitam à Coca-Cola e às colónias extraterrestres (go west, sempre), o caos urbano e genético, as pirâmides das corporations, tudo realça o contraste entre as pequenas formigas e os seus enormes formigueiros.
É de aproveitar, portanto, esta espécie de reposição. O filme ultrapassou a novela do K. Dick desde a sua primeira versão e, sinceramente, de cada vez que o Ridley Scott saca do bisturi, consegue melhorá-lo. Blade Runner vive do grande quadro, que tem sempre resistido a tudo (incluindo às novas ordens do mundo) e de pequenos pormenores. O filme tem milhões de pequenos pormenores e Deus não aparece em nenhum. A humanidade correu mal e está entregue a si própria, niilista, cínica, desesperançada, quase desangustiada, uma cambada de órfãos sem maturidade para sobreviver. Roy Bates percebe-o ao fim dos últimos espasmos. Que já só lhe restava morrer.