Não está frio nem orvalho,
Está um grizo do caralho.
W., o filme com que Oliver Stone apresenta ao mundo o 43º presidente dos EUA. A sensação imediata é a de uma obra pouco conseguida. Tenho lido comentários que vão de um extremo ao outro, daqueles que acham que o realizador foi excessivamente brando ou benevolente para com uma figura que o mundo, de bom grado, se habituou a detestar; até aos que defendem a abordagem artística e que acham que W. deve ser julgado unicamente como peça cinematográfica que é, independentemente de tudo o resto.
Não me parece possível nem sequer desejável, seja na perspectiva de cidadão/espectador do mundo, seja na de simples consumidor de arte, abstrair-me de ter à frente dos olhos um filme baseado na vida de uma das pessoas que mais influência teve (e tem, e terá) na ordem mundial. Mesmo que tal exercício fosse concebível, W. seria mediano, uma comédia, talvez, com umas pitadas trágicas, como convém; mas nada de muito especial. Só que este filme foi construído em cima da realidade, pelo que esta deve ser tida em conta na hora de o avaliar. E a realidade é que, por muito que o pacóvio texano, unido a Deus para ultrapassar os demónios do álcool e de um pai poderoso e desvalorizante, seja aquela figura que Stone nos mostra, nos briefings e nas reuniões e no Rancho; falta pathos à Casa Branca, aos homens do presidente (medíocres personagens, artisticamente falando) e à guerra. Chaplin e Lewis fizeram-no, com os seus tragicómicos ditadores (é certo que Bush não tem metade da pinta de um Adolfo). Será que é por estarmos a ver tudo, supostamente, pelos olhos do W.? Ou terá ele, em 8 anos, realmente imbecilizado tudo e todos, à sua volta e arredores? É provável que a ideia tenha sido essa mas, assim sendo, perdeu-se uma oportunidade para encenar a idiotice do mundo. Teria preferido o contraste entre o pequeno universo mental de Bush e a enorme relevância de tudo aquilo em que ele toca. Assim, W. entra directamente para a gaveta das irritações de estimação, onde jaz o Benigni com aquela merda de filme sobre a beleza da vida num campo de extermínio nazi.
"Que nos oferecem Sócrates e Manuela Ferreira Leite? Nada que rompa com o estabelecido."
Baptista-Bastos, "Diário de Notícias", 22 de Outubro de 2008
O número de folhas no chão tem aumentado. Alguém começou a tocar saxofone, à noite nas redondezas, e sabe-se que as árvores já quase não pegam nas folhas. Basta uma nota mais grave para caírem às meias dúzias. Ontem andava a passear debaixo das árvores e caiu-me um bando delas em cima, sem motivo aparente. Só se foi por ter chegado a altura de caírem.
Começar a ouvir Neil Young a partir do MTV Unplugged de 1993 pode ter um efeito interessante: as canções, as palavras e a voz mais acessíveis. Sem ser demasiado limpinho, é simultaneamente solitário e cristalino, o que nem sempre acontece, mesmo na sua obra mais folk. O disco é muito bom, do princípio ao fim. Continuo a preferir ouvir música sem imagens, com algumas excepções (este disco não é uma delas), mas cá fica Like a Hurricane. E sempre se vê o órgão de tubos que também veio a Vilar de Mouros, já não me lembro em que ano.
Que me perdoem as pessoas que ganham assim pelo menos parte da vida, mas as dobragens, excepto aquelas que se destinam a crianças em fases anteriores a um bom domínio da leitura, as dobragens em programas e documentários deviam ser despoticamente desaconselhadas. No cinema, então, nem há nada a dizer.
Todas as noites de todos os dias vigio dezenas de árvores cujo latim desconheço. Tenho-as visto mudarem de cor ao ritmo a que o Outono avança e troca de nome. A iluminação amarela realça-lhes tudo e quando calha lua cheia também as pedras da rua brilham por baixo do manto caído de folhas no chão que parecem levitar uns centímetros para dar passagem aos últimos insectos que recolhem com os últimos pedaços de coisas orgânicas e outras que os protejam do frio. De vez em quando varre-se a rua, o que é uma pena, em termos de folhas. As árvores parecem-me indecisas mas sou eu quem está, entre o alívio da dieta que as ajudará a resistir à força do vento e o jeito que lhes daria o casaco que agora se espalha e serve de oceano pacífico aos putos e aos cães que arrastam as pernas e treinam o velho truque judaico num mar de outra cor à medida que passam.
Cada vez ando menos de carro, o que implica voltar a relacionar-me com a cidade utilizando mais do que 1 ou 2 sentidos, mas também menos música e, principalmente, menos rádio. Como me apeteceram conversas, daquelas fluidas e inteligentes, nada de pretensioso ou demasiadamente encriptado (higienicamente vagas e incongruentes), procurei e fui escolher o conversador por excelência. Miguel Esteves Cardoso no Pessoal... e Transmissível de 6 de Outubro. Inicialmente sobre a ideia de que "Em Portugal não se come mal" - quem não é para comer não é para conversar, digo eu - mas que depois se estendeu às várias estações e apeadeiros da vida do Big MEC. Bem bom.
"Leio agora que em 1994, a revista Lire considerou Le Clézio «o maior escritor da língua francesa». Parece que ele respondeu: «Teria posto Julien Gracq em primeiro». É impossível não gostar dum homem que deu esta resposta."
Algumas fatwas chegam a ser divertidíssimas, naqueles segundos que as imagens de quem tem de se submeter a estas palhaçadas perversas demoram a chegar ao cérebro.