via Arrastão
Apenas o iMac vai sobrevivendo com a lucidez de sempre. À espera do camião esvazio o maço de cigarros e um pacote de leite, sozinho com mobília desmembrada, pó, esqueletos, o lugar dos quadros nas paredes, despojos de guerras surdas, um saco cheio de merdas cai, algures entre o quarto e a sala, a marca preta de seja lá o que for que a televisão liberta no sentido contrário ao da imagem (deve ser a realidade, porque chamuscou a parede), enfim, caos e desordem, milhares de pedaços de coisas embaladas, caixas que se armam e desarmam a grandes velocidades. A ordem promete aguentar-se até à eternidade, hora exacta em que o desejo muda de direcção.
|img| Chema Madoz
Ouvi ou li algures a melhor espécie de representação de tempo. Tempo equivaleria a mudança. Não existe nada, nas dimensões conhecidas, absolutamente nada que permaneça imutável à passagem do tempo.
Preocupado com o seu quinhão, o BES demarca-se das declarações de Bob Geldof sobre Angola. Se tudo fosse tão auto-evidente...
Quando penso em Passos Coelho não penso em muito, porque a maior parte da minha vida tem sido neste mundo. Nada de conspirações nas sedes da jota, comícios, sacudidelas de caspa das costas de quem quer que seja, hemiciclos ou pullovers amarelos: escola, bicla, beijinhos, faculdade, beijinhos, mercado de trabalho, o culto dos fins-de-semana, beijinhos, semáforos e coisas assim.
Quando penso em Santana Lopes mijo-me a rir. Depois fico a contar (sá) carneiros até de madrugada, olhos arregalados e imagens de um país transformado em néon e gente a desfazer-se em pedaços cada vez mais fragmentados. E a orquestra sempre a tocar.
Quando penso em Ferreira Leite penso n'O Ano Da Morte De Ricardo Reis. Não exactamente pela poesia ou pela genialidade da verve, mas pela aura espectral (e traças, por que não escrevê-lo) que dela e daqueles fatos de bel-corte emanam. E a orquestra a bocejar.
Da Trinta Por Uma Linha chega 'Mãos Mãos Mãos', escrito e ilustrado por Francisca Maia. Lengalengas e trava-línguas de personagens como o "Bicho-mão / Narigão / Cheira sim / Cheira não". O jogo no espaço transitivo da coisa para a palavra, do caos para a contenção da experiência, momento-chave da vida mental. Posologia: sempre que o livro estiver mesmo a pedir para ser aberto. Para os "muito pequenos". Agora venham pés, braços, pernas, orelhas, olhos, nariz e gargalhadas.
Sou um fã absoluto do Sébastien Tellier desde a primeira hora, desde os primeiros acordes com que abriu um concerto dos Air no Coliseu, acompanhado de uma miúda que tocava violino e esperneava desespero, uma guitarra e teclas avulsas, na apresentação dessa delícia wyatt-satieniana, L'Incroyable Verité. Até a produção mais mainstream-xóninhas do Politics foi largamente compensada pelas releituras enxutas do Sessions. O homem é como um filho para mim. Rejubilo com o reconhecimento que tem alcançado no bairro dele e a cada novo álbum acredito mais um bocado que o mundo não só é praticamente redondo como também pode ser justo, apesar dos lugares de estacionamento privados em via pública. Só que agora a minha admiração explodiu para níveis pornográficos, uma verdadeira estupidez de baba, ao saber que o gajo vai representar a França no Festival da Eurovisão. E em inglês, só para atiçar o pânico jacobino. Enquanto o big-mouth-Morrissey diz que faz mas não acontece, Tellier avança sem medos, enfrentando o perigo com um sorriso nos lábios. Prepara-te, Eládio Climax.