3 de março de 2009

pois, pois...

"Naquele tempo, o deserto encontrava-se povoado de anacoretas. (...) Ao longo do rio, divisavam-se ainda casas onde os cenobitas, que viviam isolados em celas exíguas, apenas se reuniam para melhor poderem depois apreciar os benefícios da solidão. (...) Os ascetas, furiosamente assediados pelas legiões demoníacas, defendiam-se com a ajuda de Deus e dos anjos, praticando o jejum, a penitência e as mortificações. Por vezes, o aguilhão dos desejos carnais dilacerava-os tão cruelmente que chegavam a gritar de dor e a responder com as suas lamentações aos uivos das hienas esfomeadas que erravam sob o céu estrelado. Nessas alturas, os demónios adquiriam formas deslumbrantes. (...)

A virtude dos religiosos era tal que até os animais selvagens se submetiam ao seu poder. Quando um eremita se encontrava próximo da morte, um leão vinha abrir-lhe uma cova com as suas próprias garras. (...)

Pafnúcio respeitava os mais rigorosos jejuns e ficava por vezes três dias inteiros sem ingerir qualquer alimento. Além disso, usava um cilício de pêlo extremamente áspero, flagelava-se noite e dia e mantinha-se muitas vezes prostrado com a fronte sobre a terra. (...) Assim, ajoelhado na sua cela diante do simulacro desse madeiro salutar onde foi pendurado, como numa balança, o resgate do mundo, Pafnúcio deu por si a lembrar-se de ThaÏs, porque ThaÏs era o seu pecado, e meditou longamente segundo as regras do ascetismo, na fealdade monstruosa das delícias carnais para as quais essa mulher o havia despertado, nos dias de ignorância e de perturbação. (...)

- Irmão Palomão, irei a Alexandria ter com essa mulher e, com o auxílio de Deus, convertê-la-ei. Tal é o meu desígnio; não o aprovas, meu irmão?

- Irmão Pafnúcio, não passo de um infeliz pecador, mas o nosso pai António tinha por hábito dizer: «Estejas em que lugar estiveres, não tenhas pressa de sair em direcção a outros lugares.» (...)

Uma grande agitação tomava conta do seu espírito.

«Este eremita», pensava ele, «é um bom conselheiro; está nele o espírito da prudência. E ele duvida da sensatez do meu desígnio. Porém, afigura-se-me cruel deixar que ThaÏs se mantenha durante mais tempo presa no demónio que a possui. Que Deus me ilumine e me conduza!»

(...) "

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Anatole France (ThaÏs, 1890)

[img] Jeff Alu