16 de novembro de 2007

Punch & Judy

Qualquer coisa lhe servia de motivo para retoricamente espancar tudo e todos. Quando não apanhava ninguém a jeito, quando todos conseguiam gerir as suas provocações paradoxais sem solução aparente, chegava a casa e exigia jogar Scrabble com a mulher, estivesse ela a dormir ou a ver os resumos da Premier League. Até certa e determinada altura, o grande segredo dela era que, já desde há um par de anos, via-se obrigada a fingir as derrotas. Tinha-se tornado exímia, à força de tanta pancadaria. Os amigos, colegas e conhecidos, porém, não tiveram a mesma sensibilidade. Quando perceberam que podiam finalmente fazer-lhe alguma sombra, trataram de lho demonstrar. Nunca mais o Senhor Punch venceu um debate: primeiro nas reuniões da assembleia de vereadores, o que implicou que coisas começassem, finalmente, a ser construídas na vila; depois no café, com a consequência de um assombroso decréscimo nas vendas de bebidas alcoólicas, tão empenhados estavam em permanecer sóbrios para poderem humilhá-lo quando se discutissem sinónimos de «concupiscência» em palavras com mais de 7 sílabas e sem recurso a estrangeirismos. O golpe de misericórdia foi finalmente dado pela esposa. Na noite que se seguiu a um dia para esquecer, o Senhor Punch preparava-se para mitigar a raiva em mais uma arrasadora vitória no tabuleiro. Mas Judy denunciou a sua mestria ao arquitectar uma palavra quase impossível, desferindo o golpe fatal com a enunciação, de memória, de todas as falácias, por ordem crescente de imbecilidade, que teve de engolir para manter acesa a periclitante chama daquela relação. Semanas antes tinha conhecido e iniciado uma fogosa aproximação ao dono de um império das sopas de letras.