5 de novembro de 2007

Old Demotic

Chovem canivetes abertos. Não é a primeira vez que chovem canivetes, em Old Demotic. Ninguém liga, apesar dos esgares de enfado. Já choveu todo o tipo de coisas. Os velhos lembram-se de se terem esquecido daquele ano em que choveram mulheres. Conta-se a alegria que foi: as poucas que não morreram, amparadas pelos toldos das lojas ou absorvidas pelas águas do rio passaram a integrar a pacata comunidade. Não foi fácil porque eram especialmente belas e muitos casamentos fossilizados começaram a exibir brechas estruturais. Mas desta vez chovem canivetes abertos.

As estradas animam-se de faíscas ao contacto com as lâminas. Numa terra como esta as pessoas habituam-se a caminhar debaixo das protecções que as casas oferecem por decreto autárquico. Os estragos materiais foram imensos: automóveis, semáforos, uma instalação de esculturas em papel e plasticina no recreio da escola. Arruinados.

Naquela noite, como em todas as que se sucedem aos dias em que chovem coisas pesadas, haverá reunião popular espontânea. Discursarão os mesmos de sempre: os invejosos, o ridículo, os avarentos, os advogados, o ingénuo e o padre. As reuniões da chuva foram sempre um bom terreno para aprofundar conhecimentos, iniciar relações, romper ou propor negócios mirabolantes. Raramente se decide o que quer que seja sobre o produto acumulado daquilo que cai dos céus. Old Demotic possui, a cercá-la, uma vasta cordilheira de resíduos; alguns valiosíssimos, como quando choveram anéis da Opus Dei, outros (a maior parte) o autêntico refugo dos deuses.

Tomané, o radialista, passou o dia suspeitoso. Pouco falou a entremear as longas peças de rock progressivo que insiste em difundir pelos lares e lojas daquela terra. Tomané cogita, há já várias horas que se distingue claramente a ruga do intrigado, a circunvolução que lhe une as poderosas sobrancelhas como a estrutura de uns óculos de que nunca precisará porque, como diremos, o fim está próximo. Não compreende porque raios os canivetes abertos caem com a lâmina para baixo, se o corpo do objecto onde a mesma se recolhe é incomparavelmente mais pesado e o magnetismo terrestre liga a essas coisas.

Tomané ainda não sabe e a comunidade muito menos, mas o fim está próximo. Deus começa a perder as estribeiras. Depois de anos, séculos a pilheriar Old Demotic, prepara-se para ignorar todos os mais básicos princípios da decência, que é o que chamamos por ser o que acontece quando as leis da lógica de um povo são subvertidas.

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Resgatado ao vazio bonito (rip).

A/C Balthus, Borges, Calvino e Joshua Brand + John Falsey ("Northern Exposure")

[img] Balthus | La Rue | 1933